Catálogo de Erros
Quando olho pra esse jardim de grama verde...
Quando vejo o colorido berrante dessas flores...
Quando sinto esse cheiro de terra molhada...
Tudo inebriante, um leve torpor, um discreto embriagar-se...
Chego a duvidar de que isso tudo seja verdade.
Tudo parado, o tempo parado, um silêncio ensurdecedor. Apenas um movimento: Uma libélula quase transparente a zumbizar. Um minúsculo lago em meio a esse verde multicor. O mergulho da libélula, na verdade, apenas um triscar na água. E tudo começa a se movimentar. Círculos concêntricos, miniondas...
Meus olhos estão cansados de ver. Ainda ouço muito bem, mas agora apenas sua respiração ofegante se faz presente. Seu cheiro sem perfume, como pôde ter ficado tantas décadas atrás? Sua risada ao longe. Eu a achava estridente, lembra?
Não sei se isso é uma praça, um jardim, um quintal. Meus olhos estão cansados de ver. Já passou do meio-dia, mas o banco em que me recosto está abrigado sob a grande árvore. Aquela em que estão gravados nossos nomes. Elas vivem mais, as grandes árvores. Mas esta não acolhe nenhum outro ser vivo que não seja ela mesma. E pensar na profusão de sons estridentes que aqui havia, os pássaros, as cigarras, as abelhas, as crianças, sua risada...
A libélula arrisca outro mergulho e novas ondas chegam até meus pés descalços. Não há vento, não há brisa, apenas a água e o sol se movimentam. Eu estou estático, meus músculos não respondem mais, as sinapses avariadas. Mas sinto seu cheiro e ouço sua música, nossa música. Nem as tecnologias de hoje seriam capazes de trazer de volta as sensações que isso tudo me provoca.
O sono é quase incontrolável. Difícil manter os olhos abertos. Um leve calor agora, quando a sombra muda de lugar. Um alaranjado que não vejo explode sob minhas pálpebras, em minhas retinas cansadas. Tarde morna, demorada, melancólica. Há anos, décadas, que esse sentimento me abandonara. Essa vontade de ir além, essa tristeza latente. Tudo trocado pela eficiência dos dias produtivos.
Passei esse tempo todo, e é muito, 90 anos, à espera de algo mais. E me perdi nos caminhos da vida. Amei, ganhei dinheiro, tive amigos leais e sinceros, ainda hoje lembram de mim. Mas, todo esse tempo, todinho, apenas esperei a vida passar.
A tarde vai ficando avermelhada. O clima, frio. Logo será noite e elas, as noites, sempre foram meus melhores momentos. O jardim logo ficará escuro, a grama cinza. Talvez seja noite clara hoje. Meu quarto, tranqüilo e acolhedor, fica aqui perto. Não será preciso muito esforço pra chegar até lá. Mas ainda respiro esse sol de fim de tarde. Ainda ouço o barulho da grama crescendo e espero, a qualquer momento, algum movimento. Esse cheiro, meu deus, essa música... Por que te trazem de volta apenas em espectro?
Estou só. E gostaria apenas de um último desejo nessa Eternidade em que me encontro: Poder tocar novamente seus cabelos brancos e sua pela enrugada.
PS: Publicado originalmente no Mimeographo
Um comentário:
Oi Paulo.
Não tinha lido o texto no Mimeographo, que bom que vc poostou de novo aqui. Pra variar, achei lindo... e triste.
Mas achei especialmente lindo pelos sentidos que vc aborda. Porque ultimamente eu estou me importando menos com o visual, também, e estou dando tudo para sentir cheiros mais interessantes, cheiros de nostalgia ou novos cheiros, porque dos cheiros comuns (fumaça, lixo) eu já cansei.
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