sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Ele acordou diferente

Sem saber exatamente por que, ele acordou diferente naquela sexta-feira. O dia amanheceu escuro, melancólico, de chuva fina. Tudo parecia que fazia muito tempo. Banho demorado. Decidiu não fazer a barba. Vestiu os mesmos paletó e gravata de ontem. Um tablete de chocolate, dois comprimidos.

Na rodovia, até a TV, alta velocidade. Viagem perigosa, arriscada. Queria que as coisas passassem mais rápido, o dia, a vida.

Sem bom dia, a recepcionista estranhou. Carro de novo. Entrevistas estúpidas, gente patética.

O homem sem pernas e de mãos atrofiadas pedia esmolas na esquina. Uma capa de chuva cobria o meio corpo que, à noite, apenas à noite, seria buscado na cadeira de rodas e levado sabe-se lá pra onde na velha Brasília. “Por que esse desgraçado não morre, meu Deus?”.

À tarde, no Aromatic Café, leu somente as páginas policiais dos jornais. A fonoaudióloga foi estuprada e assassinada a golpes de faca. O aposentado teve parada cardíaca e o pescoço degolado. A polícia culpou o cachorro da vítima. O músico famoso atropelado enquanto fazia cooper. Coma profundo. Café expresso.

Cuba libre de cachaça no boteco. O Primo era uma espelunca sem run. Copos sempre sujos, cuba libre falsificada. A menininha sem futuro veio pedir um autógrafo – “ela te conhece da tv”, a mãe, meio sem graça. Churrasquinho de 70 centavos. Pagou um ao mendigo. O casal na mesa ao lado brigava por causa da pintura da casa. Cuba libre.

Em casa, Sartre, impotência. Voltou a chover, tudo fazia muito tempo. As brigas na infância, os amigos perdidos – “meu Deus, aonde andará aquela garota…?”

As nuvens baixas refletem as luzes da avenida, céu meio alaranjado. O vento muda de direção, a chuva respinga na sacada. Os anos voam, décadas. O tablete de chocolate e os comprimidos haviam sido há muito, muito tempo. Não fazia mais sentido. Era o 12° andar, o céu continuava claro, parecia mais perto. Garoa gelada e vento agradável. Parapeito.

Goiânia,  junho de 2001

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