Não é da competência da Abin vasculhar os documentos e informações de todos os cidadãos. Segundo o próprio estatuto da agência, seu papel é municiar o presidente da República com “informações nos assuntos de interesse nacional”. Implantar um sistema para vasculhar nossos nomes e fotos massivamente, sem levar em consideração princípios básicos como o direito à privacidade e presunção de inocência, bem, parece ser apenas interesse do governo, não do país.
Intrigado, um leitor do Intercept que prefere se manter anônimo fez um pedido via Lei de Acesso à Informação ao Gabinete de Segurança Institucional. Ele pediu ao órgão ligado à presidência e responsável pela Abin mais esclarecimentos sobre as nossas revelações: quis saber se de fato a agência pediu os dados ao Serpro e quais são os "interesses nacionais" na coleta e no arquivamento das nossas carteiras de motorista.
E não é que o GSI respondeu? No documento enviado ao nosso leitor, o órgão diz que o pedido de acesso aos dados do Denatran visa, entre outros pontos, "ampliar a capacidade de obtenção e análise de grandes volumes de dados estruturados e não estruturados". Isso significa que a Abin tem interesse, sim, em mecanismos de vigilância massiva – em outras palavras, primeiro monitorar todo mundo por padrão para depois ver, com a ajuda de análises computacionais, se há algo errado naquele monte de informações.
A agência também queria nossas CNHs, segundo o documento, para "aprimorar a estruturação e o compartilhamento de bases de dados de Inteligência" e "promover a interoperabilidade de bases de dados de interesse em nível nacional". As três justificativas são previstas na Estratégia Nacional de Inteligência, aprovada em 2017 pelo então presidente Michel Temer, que determinou as regras de conduta para o órgão no Brasil. Na época de sua aprovação, especialistas já alertaram que o texto poderia abrir margem para esse tipo de vigilância em massa, parecida com a da agência de espionagem norte-americana NSA, revelada por Edward Snowden.
Não é só a Estratégia que orientou a Abin. Na resposta ao nosso leitor, o governo disse que o pedido de dados de CNHs está em "perfeita consonância" com o decreto 10.046, aprovado por Jair Bolsonaro no ano passado. Nós já falamos dele: foi a canetada que criou, do dia para a noite, uma megabase de dados de todos os brasileiros, a ser integrada e usada por todos os órgãos federais. A ideia divulgada pelo governo é a de desburocratizar – mas, na prática e sem controle, informações pessoais sensíveis, incluindo dados biométricos, podem cair nas mãos do governo para fins que, bem, não sabemos bem quais são. Ou você imaginaria que, ao entrar na auto-escola, sua foto da CNH cairia nas mãos dos agentes da Abin?
Segundo o documento enviado ao nosso leitor, a agência garante que "não realiza qualquer tipo de espionagem ou atentado à privacidade" e que as requisições são feitas após análise jurídica. "Uma vez compartilhados, os dados são empregados em estrito cumprimento das competências legais, para a produção de conhecimentos de inteligência, visando ao assessoramento das autoridades decisórias em maior nível hierárquico federal, em prol da segurança e da estabilidade da sociedade e do Estado", diz a agência.
O GSI ainda listou até a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado e a Convenção Internacional para Supressão do Financiamento do Terrorismo na sua lista de justificativas para colocar as mãos nas nossas CNHs.
Não adiantou tanto malabarismo. A requisição ultrapassa o âmbito da Abin – tanto é que o caso que revelamos motivou uma ação do PSB no Supremo Tribunal Federal contra o decreto 10.1046, usado como fundamentação para o troca-troca de dados dentro do governo.
Segundo a ação, o pedido de dados de CNHs foi feito sem transparência e consentimento. "Viola frontal e inequivocamente o direito à liberdade e à dignidade da pessoa humana bem como, e especificamente, os direitos à privacidade, à proteção de dados pessoais e à autodeterminação informativa", diz a ação.
Poucos dias depois da publicação da nossa reportagem, o governo voltou atrás e revogou a portaria que permitia o compartilhamento dos dados do Denatran à Abin. Isso fez a Advocacia-Geral da União pleitear a perda do objeto da ação, ou seja, pedir que o caso fosse deixado de lado porque o problema central já havia sido resolvido. O STF negou: o ministro Gilmar Mendes, responsável por julgar o caso, decidiu manter a ação. "É dever constitucional deste STF debruçar-se sobre a matéria, evitando-se que situações graves que colocam em risco a violação de preceitos fundamentais sejam perpetradas com suposto fundamento no Decreto nº 10.046, de 9 de outubro de 2019", justificou Mendes.
Como o nosso leitor descobriu, a Abin acha perfeitamente justificável implantar um sistema de coleta massiva de dados e análise de big data para fins de inteligência – mesmo que isso signifique colocar todos nós em constante vigilância, sem nenhuma transparência. Esse não é um caso isolado – mas reflexo de governos que, em nome de uma suposta segurança nacional, abrem mão sem dó de nossos direitos fundamentais. A Abin quer estender seus tentáculos para cima da gente, com suposto respaldo da lei e da tecnologia. Mas nós – e isso inclui vocês, leitores – estamos de olho nisso, e fazendo os poderosos ficarem de olho também. Um viva aos leitores do TIB!