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sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Carta a um curitibaninho

Tudo, absolutamente tudo o que vemos se torna passado a partir do exato momento que presenciamos. Seu reflexo no espelho não é o presente, porque a luz percorreu milissegundos de sua imagem até lá e, sua bela imagem, mais alguns até você. A própria luz do sol traz o calor de oito minutos atrás.

É assim que revejo o garçom de tantos anos antes. Parece o mesmo, mas não é. Nada é mais igual.

Esta não é mais a minha Curitiba. Estes não são mais os meus amigos e, acima de tudo, este não sou mais eu.

Um ser nostálgico sempre será melancólico - e o inverso também, provavelmente, é real. Não foi a Curitiba friorenta que eu imaginava encontrar neste inverno, neste mundo cada vez mais louco. Fez calor na minha chegada. O casaco pesado, do Exército da República Islâmica do Irã, garantiu o vendedor, anos atrás, permanece na mala.

Mas o calor não vem só do clima. Vem do acelerado do coração, do pulsar de veias e artérias diante do mesmo que não é mais o mesmo. Do igual que não é mais igual. Do Underberg que rasga e embarga a garganta.

Foi aqui que nasceu meu filho, a razão de viver de qualquer pai. Foi aqui que surgiu minha única e mais valiosa herança para esse mundo tão louco, tão sem calor. E tanta coisa mudou, filho...

E tanto vai mudar em seu longo caminho...

Seu pai está ficando velho. E o tempo continua passando apressado.

Passou mais um tantão desde que comecei a traçar essas linhas. Mas nada, filho, nada faz passar meu amor por você.

Sua foto está em meu plano de fundo do celular. Outra, na tela de bloqueio. Porque, hoje, minha vida é você. Fico pensando se, aqui onde escrevo, você esteve comigo algum dia. Creio que não. E mesmo que houvera estado, não seria, como já disse, o mesmo lugar.
Mas o que seu pai puder fazer para te dar o mundo possível, farei. Em Curitiba, em Goiânia, em qualquer lugar que você quiser se aventurar.

Filho, você nasceu na cidade em que eu gostaria de viver. Mas você também pode escolher a sua, porque, antes, era Londrina minha cidade. O peso e a sabedoria dos anos.

Eu espero que você nunca precise, como essas crianças que vejo aqui nesse frio de oito graus tentando vender alguma coisa, se submeter a dificuldades da vida.

Ah, sim. O tempo virou e, agora, faz frio. O casaco da República Islâmica do Irã, ao contrário do que eu pensava, não veio - que falha a minha.

Estou passando um pouco de frio na sua cidade. É assim aqui, verão e inverno no mesmo dia.

É assim que a vida deve ser, filho. Com todas as possibilidades no mesmo instante. Que já não será exatamente o mesmo instante.

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Quilômetro 301

O GPS, essa maravilha da modernidade que nos ajuda a encontrar o caminho, indica uma rota diferente daquela de tantos anos antes, décadas. A estradinha desconhecida e, ao mesmo tempo, tão presente.

Teria sido ali, na abandonada escola infantil do bairro Pau Lavrado, que a jovem e bela professora Ana, minha querida e severa mãe, me deu aquele estrondoso tapa na cara, na frente de todos os alunos, misturados em séries distintas, por eu insistir que houvera sido hostilizado por um deles? (Foi de propósito, foi de propósito, foi de propósito… splash)

Dona Ana está no Céu e, ainda que na Terra, não poderia responder dúvida tão antiga e pessoal. Porque as dores que sofremos são nossas, de mais ninguém

Poderia não ter sido no Pau Lavrado. E, sim, no Taquari (onde, quando você faz caca, faz xixi), no Baguaçu (onde, se você faz caca, sai chuchu), no Pau D'alho (aqui, nós, crianças, estranhamente não tínhamos uma rima). Ali, tudo ali, ressurgindo como espíritos obsessores. O calor, aquele calor…

Quilômetros de pasto e de sorgo. O Noroeste paulista também é agro e o agro é pop, é tech.

O sol insiste em amarelar a paisagem. Em distorcer a realidade, como um ser delirante perdido no deserto. Onde está o oásis? Onde?

A chegada ao Norte paranaense se dá por outros caminhos. Eles não existiam naquela época de viagens mensais. A ponte do Paranaíba parece mais estreita. O sol ainda castiga, mas com aquele friozinho começando a mostrar que eu estou aqui, na terra que amei desde sempre, desde antes de aqui pisar. 

Hectares e hectares de milho transgênico, cada lote com sua plaquinha de identificação. A terra vermelha, orgulho do paranaense, profanada assim, sem cerimônia... afinal, quem se preocupa com o futuro de nossos filhos, da humanidade? O agro é tech, o agro é pop. Mas “não queremos a indicação de transgênico na embalagem”. 

Sou obrigado a tirar os óculos de sol. Porque aquela luz do Sul não brilha mais tanto. Desligo o rádio. O silêncio e a contemplação tomam conta de mim.

O potente motor parece perder sua força. O carro, cada vez mais pesado com as toneladas de lembranças que surgem, rebeldes, nesta cabeça conformada. 

O peso dos anos, da ausência, do desapego…

Não consigo, não posso traduzir em palavras esse sentimento que se me apossa ao chegar a Londrina. Não há explicação terrena que o descreva. "Porque eu não era de lugar nenhum." Eu não era de lugar nenhum. 

Reencontrar as ruas que não são mais as nossas. As dores, que não são mais as mesmas. As esperanças que se transformaram por aí... 

E aqueles amigos de sempre e para todo o sempre. Ah, este ateu tem que rever suas convicções!

Há uma teoria, a Das Cordas, que tenta acalmar os corações e as mentes dos físicos, e une o entendimento da imensidão do Universo ao elemento mais básico e rudimentar da existência... a corda, a menor partícula de que se tem conhecimento, em nossa limitada compreensão de nossas origens e destinos. 

Nesse momento, bilhões de cordas vibram em meu ser. Vibram por tudo. Mas vibram, essencialmente, por você.

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Quinze anos depois, ele continua correndo de costas na BR-153

Em dezembro de 2005 eu publiquei a crônica "Quando Penso em Seguir em Frente" na versão impressa da Tribuna do Planalto. Era sobre uma figura que eu via quase todos os dias correndo de costas na BR-153. Passei um bom tempo tentando recuperar esse texto - não lembrava que tinha guardado o jornal - para organizar uma coletânea de crônicas. Encontrei recentemente. E, essa semana, após 3,5 anos de retorno a Goiânia, a surpresa: encontrei novamente o corredor às avessas, no mesmo trecho urbano da rodovia. Parei arriscadamente e já lá na frente pra fazer o registro, que obviamente não ficou muito bom. Mas achei muito interessante ver que ele ainda corre por aí.

Abaixo, a crônica.

Quando penso em seguir em frente

Há um rapaz estranho em Goiânia. Porque achamos estranho quem não é como a gente. Quase todo mundo sabe de quem se trata, mas duvido que alguém o conheça de verdade.

É relativamente fácil encontrá-lo. Está sempre, talvez todos os dias, fazendo cooper no acostamento da BR-153, aquela que liga o Brasil de norte a sul.

Não há nada de errado em se fazer exercícios físicos. Dizem os especialistas que faz bem à saúde, ao coração e aos fabricantes de calçados. Aconselham apenas cuidado na escolha do horário: início da manhã, final de tarde.

O nosso corredor, eufemisticamente desgrenhado, mal calçado, às vezes sem camisa, tem uma peculiaridade que o diferencia de todos os outros esportistas: corre de costas. Nosso quase mendigo, talvez quase louco, possivelmente quase normal, usa o perigoso acostamento da rodovia pra sua corrida, talvez diária, de marcha a ré. E sem olhar pra trás – ou pra frente.



Onde quer chegar nosso amigo? É a pergunta que me faço sempre que o vejo, como hoje. (Ele não toma os cuidados aconselhados pelos especialistas. Eram duas horas da tarde, sob pleno sol do cerrado). Estaria fugindo do que o espera?

Alheio às perguntas e à curiosidade dos motoristas que rompem, apressados, o trecho urbano da BR-153, ele segue sempre em frente – ou pra trás. Mãos, braços em movimentos ritmados, largados pra trás, como que tateando o caminho que ele não vê. Há os que não podem enxergar. Ele optou por não ver.

Pro atleta solitário as coisas nunca estão se aproximando. Tudo vai ficando distante. Ele não espera nada, apenas se despede. A fome que passou ontem ficou lá atrás, em frente ao estádio. Na curva do shopping descansa a última indiferença. Derrapa na pista molhada a vida que não existiu.

Aquelas mãos jogadas pra trás, em compasso binário, ditam o ritmo cadenciado da corrida. Corrida a favor e não contra o tempo. Há pressa nesse caminho?

Os carros passam pro serviço, pra escola, pra São Paulo, pra Belém. Ele permanece indiferente, sempre o mesmo ritmo. Não há preferência no sentido. Mas há que se lembrar: ele sempre segue pra onde nunca chega.

Um dia vou perguntar ao nosso homem o motivo de correr pra trás. Caminharia ele assim também? O que me responderia o atleta às avessas? Diria que correr pra trás é melhor do que seguir em frente e não chegar a lugar algum?

Eu, que sempre pensei ter andado pra frente, pergunto-me se, assim como nosso amigo, não tenha sempre corrido pra trás.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Carnaval

É início de noite e um improvável vento frio de verão me pega de surpresa. Desço a rua apressado pra casa, um pouco pelo frio, um pouco por medo, um pouco por nada.

É sempre assim nos dias em que não há o que fazer: desespero. É o tempo vindo, chegando, passando. Acreditar em qualquer coisa não é mais tão fácil como há dez anos.

Chego em casa, lá fora pessoas brincam, ouço ruídos de alegria temporã. O que eles comemoram? Protejo-me do frio, mas não das horas que passam. Medo. Não há nada a fazer, nada. É a "ressaca do tempo", como disse o repórter das coisas.

Escolho uma roupa de inverno e saio para a noite improvável. É impossível ficar aqui, não há nada a fazer.

É uma multidão, é música que dói na cabeça, mas ninguém parece ligar. O universo paralelo, ah!, o universo paralelo, sim, começo a entender, mas tudo continua estranho...

Estou na avenida que leva a lugar algum e encontrei o caminho. Observam-me, sabem que estou perdido, indo pra lugar algum. E riem e cantam e gritam. Eles me odeiam, sei que me odeiam, riem de mim. Mas estou na rua certa, na minha cidade, qual é mesmo a cidade?

O frio da madrugada agora... frio de verão, como pode o frio de verão ser tão cortante? Minha roupa me protege do vento gelado e da garoa fina.

Entro no bar escuro, aquele de sempre, na rua de lugar algum. E ela está lá e ela nunca sente frio. E ela me olha, mas não ri. Não diz nada e, no entanto, entendo tudo. Ela me explica que está frio lá fora, que sempre faz frio na madrugada impossível e que no bar escuro é difícil respirar.

Eu beijo a garota no bar de sempre, aquele na rua de lugar algum e ela não diz nada, ela me olha de olhos vermelhos e ela chora. Há fumaça de cigarro, há cheiro de bebida e há os olhos vermelhos e molhados dela no bar. Lá fora as pessoas ainda riem, cantam e gritam.

Eu não posso mais e eu a deixo e ela não diz nada, ela chora, ela tem os olhos vermelhos e molhados no bar escuro de sempre. Estou na rua que leva a lugar algum, mas volto pra casa. A garota inexistente me ensinou que o tempo para na noite de carnaval. (Goiânia, 04/03/03)


terça-feira, 13 de setembro de 2016

Temer, jamais


Em frente ao Comitê Olímpico da Lapa, dezenas ou centenas de medalhas jogadas no chão. Acomodadas por categoria nas saliências da calçada esburacada, estavam ali, sem que ninguém se importasse, marcando o protesto silencioso dos paratletas contra o golpe no Brasil, soube. Peguei uma de cada de recordação e elas realmente faziam barulho, para que os atletas cegos pudessem identificá-las, novidade brasileira.

No caminho pra não sei onde, alguém que já não me lembro mais - era minha avó ou minha prima? -, insistiu em ficar com uma. Expliquei onde havia muitas delas - as Paralimpíadas distribuem mais medalhas porque cada modalidade tem várias classificações de atletas -, mas tive que me desfazer de uma de bronze, a única diferente, parece que feita de casca de coco.

Na confusão daquele dia, carregava comigo também dezenas de CDs que comprei às cegas de um vendedor qualquer em dois grandes sacos de lixo preto. Não sabia nem o estilo das músicas, era mais pelo preço mesmo, e aquilo era pesado pra caramba.

Numa esquina qualquer - e fico imaginando que lugar era aquele -, paro pra conversar com alguém e um dos sacos, aberto, escorrega entre os vãos da escadaria vazada. Quando tento recolocar os CDs no saco - estava com pressa pra chegar em casa -, sou ajudado por minha mãe e meu pai.

Tinha sido um dia agitado demais. Muitos protestos na cidade contra o golpe de estado. Tive um trabalho danado pra fugir da polícia. Acabei ajudado por um oficial, que me explicou por qual rua deveria seguir pra fugir do batalhão ensandecido de soldados, dispostos a descer o cacete em quem insistisse em permanecer nas ruas protestando.

Momentos antes, discuti com um desses. Fingi não saber que eram proibidas manifestações democráticas enquanto ouvia ele dizer no rádio “sim, eles serão retirados, sim”. Haveria algo a temer?

Subi uma ladeira íngreme, irritado comigo mesmo por não ter anotado o nome do policial raivoso. Queria colocar na matéria que escrevia para o principal jornal da cidade. Eu queria ter anotado alguma outra coisa pra lembrar depois, mas só tinha o bloco de notas do celular. Tinha permanecido na cobertura dos protestos o dia todo, mas eles não pagavam hora extra, e as doze horas de trabalho diário ainda não tinham sido aprovadas pelo governo golpista. Decidi não trabalhar de graça e não fazer aquela parte da matéria.

Lá de cima, eu via a rua, de um lado, repleta de manifestantes acuados. Do outro, os policiais. De repente, alguma ordem determinou a retirada da polícia. No mesmo momento, os manifestantes começaram a reocupar seus postos. Os policiais recuaram do recuo e partiram pra cima.

A coisa ficou feia. Descobri que um golpe de cassetete dói mesmo. Fugindo, entrei numa galeria onde havia um pequeno bar que já tinha visto outras vezes. Pensei em entrar pra telefonar - a bateria do meu celular estava com pouquíssima carga, reservada pra alguma foto importante -, mas um aviso na porta me desencorajou: só entre se for consumir. Não havia uma viva alma lá dentro, talvez nem mesmo o dono.

Segui pela galeria, igualmente deserta, mas a outra ponta estava fechada. Encontrei alguns conhecidos. Estávamos perplexos com a violência policial. Comentei que o jornal perdera uma bela matéria, porque só iria escrever o que tinha visto até o momento em que venceu meu horário de trabalho. Voltei por onde vim. Uma dúvida me incomodava: por que a Lapa tinha um comitê paralímpico só dela?

Precisava ir pra casa escrever a tal matéria, já estava quase na hora do fechamento. Mas aí o Théo chorou no berço, eu, avisado pela babá eletrônica, acordei, e tive mesmo que levantar.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Eu sou petista!

Eu sou a favor do Estado mínimo. Contra a corrupção, a ineficiência e a inacreditável burocracia do poder público. Mas, para alguns, eu sou petista.

Eu sou a favor da prisão de Dirceus, Delúbios, Delcídios e quantas mais aliterações. E quantos mais atuais e ex que foram ou forem pegos com a mão na botija. Mas, eu sou "petista".

Eu sou contra as cotas raciais - das quais poderia me beneficiar - nas universidades e nos concursos públicos. Mas, eu sou "petista".

Eu sou a favor do porte de armas para cidadãos de bem. Mas, eu sou "petista".

Eu nunca fui comunista. Nunca defendi o socialismo como ideologia. Aplico na Bolsa. Tenho pavor da tutela do Estado sobre o cidadão. Mas, eu sou "petista".

Você nunca viu uma crítica minha sequer ao ex-ministro Joaquim Barbosa durante o processo do Mensalão do PT. Mas, eu sou "petista".

Durante todo o processo da Lava Jato eu fiz uma única crítica - quase em uníssono com os maiores juristas do país e o próprio STF - ao juiz Sérgio Moro: o vazamento de um grampo ilegal da então presidente da República, hoje afastada do cargo. No mais, apoio total. Mas, eu sou "petista".

Defendo uma ampla revisão do pacto federativo e da concentração de recursos nos cofres da União. Mas, eu sou "petista".

Acredito que o Bolsa Família - inspirado no Cartão Cidadão criado no primeiro, eficiente e moderno governo Marconi Perillo (PSDB/GO), em quem votei enquanto morava em Goiânia - falha ao não ter prazo de validade nem ser diretamente vinculado a programas de emprego. Mas, eu sou "petista".

Sou contra o foro privilegiado para políticos, com raras exceções inerentes a determinados cargos. Mas, eu sou "petista".

Sou contra as indicações políticas para os frágeis Tribunais de Contas. Mas, eu sou "petista".

Sei que o PT não só aprimorou como ampliou exponencialmente a corrupção praticada desde sempre nesse país. Mas, eu sou "petista".

O projeto que eu defendia para o país foi DERROTADO nas urnas em outubro de 2014. Mas, eu sou "petista".

Eu defendo a independência do Banco Central. Mas, eu sou "petista".

Eu defendo a redução de encargos trabalhistas para o setor produtivo, ainda que com revisão de direitos. Mas, eu sou "petista".

Eu sou contra o golpe de Estado a que estamos sendo submetidos porque revela tristes aspectos de nossa frágil e risível democracia e porque sei - sabemos, eu, Machado e Jucá - quais seus reais motivos e objetivos.

"Ahá! Eu não disse que você era petista?"

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Ele acordou diferente

Sem saber exatamente por que, ele acordou diferente naquela sexta-feira. O dia amanheceu escuro, melancólico, de chuva fina. Tudo parecia que fazia muito tempo. Banho demorado. Decidiu não fazer a barba. Vestiu os mesmos paletó e gravata de ontem. Um tablete de chocolate, dois comprimidos.

Na rodovia, até a TV, alta velocidade. Viagem perigosa, arriscada. Queria que as coisas passassem mais rápido, o dia, a vida.

Sem bom dia, a recepcionista estranhou. Carro de novo. Entrevistas estúpidas, gente patética.

O homem sem pernas e de mãos atrofiadas pedia esmolas na esquina. Uma capa de chuva cobria o meio corpo que, à noite, apenas à noite, seria buscado na cadeira de rodas e levado sabe-se lá pra onde na velha Brasília. “Por que esse desgraçado não morre, meu Deus?”.

À tarde, no Aromatic Café, leu somente as páginas policiais dos jornais. A fonoaudióloga foi estuprada e assassinada a golpes de faca. O aposentado teve parada cardíaca e o pescoço degolado. A polícia culpou o cachorro da vítima. O músico famoso atropelado enquanto fazia cooper. Coma profundo. Café expresso.

Cuba libre de cachaça no boteco. O Primo era uma espelunca sem run. Copos sempre sujos, cuba libre falsificada. A menininha sem futuro veio pedir um autógrafo – “ela te conhece da tv”, a mãe, meio sem graça. Churrasquinho de 70 centavos. Pagou um ao mendigo. O casal na mesa ao lado brigava por causa da pintura da casa. Cuba libre.

Em casa, Sartre, impotência. Voltou a chover, tudo fazia muito tempo. As brigas na infância, os amigos perdidos – “meu Deus, aonde andará aquela garota…?”

As nuvens baixas refletem as luzes da avenida, céu meio alaranjado. O vento muda de direção, a chuva respinga na sacada. Os anos voam, décadas. O tablete de chocolate e os comprimidos haviam sido há muito, muito tempo. Não fazia mais sentido. Era o 12° andar, o céu continuava claro, parecia mais perto. Garoa gelada e vento agradável. Parapeito.

Goiânia,  junho de 2001

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Verdades

_ Qual o sentido da sua vida?
_ Anti-horário, à velocidade de um dia após o outro.
_ Você é impossível.
_ E o que significa ser “impossível”?
_ Significa ser alguém que não vê que a primavera chegou nem que ela se foi. Que não sente o cheiro de terra molhada depois de uma chuva de verão, nem o calor de um abraço no inverno.
_ Então eu sou impossível.
_ Sim, e é também inviável e desnecessário. Como um vigia de carro na porta de um bar ou um placebo. Você caminha, como confessou, na velocidade de um dia após o outro e isso é muito pouco pra que se chegue a algum lugar que valha a pena.
_ Eu prefiro esperar que as coisas aconteçam a seu tempo.
_ Você prefere que as coisas não aconteçam, que as pessoas não te encontrem, assim como a operadora de telemarketing da LBV. Você é prevenido demais. Não viaja de avião, sem saber que o maior perigo é permanecer em terra firme. Não toma sorverte com medo de perder a voz. Não salta no bungee jumping da vida. É um inútil.
_ Querer dar tempo ao tempo não é ser inútil.
_ Dar tempo ao tempo é saltar do trem apenas quando ele já está parado. É não descer do ônibus com medo dele seguir viagem sem você. É não beijar aquela garota com medo de que ela se apaixone por você – e aí, o que aconteceria com sua vidinha? É não sair de casa sem um guarda-chuva.
_ Você, decerto, é o oposto…
_ Não, eu sou exatamente assim. A diferença é que eu sei e aceito isso.
_ Saber não representa nenhuma vantagem. É preciso encontrar a saída e ela pode estar em qualquer uma das sete portas à sua frente. Tente uma delas, se tudo está tão claro pra você.
_ Não se trata de estar claro ou escuro. Trata-se de fazer uma opção em vez de ficar esperando que alguém abra as portas pra você. Trata-se de escolher um caminho, mesmo sabendo que toda escolha é uma perda. Trata-se, fundamentalmente, de saber que é impossível chegar onde se quer sem deixar alguma coisa pra trás. Você não sabe disso. É egoísta e pretensioso. Quer sempre aumentar a bagagem e não percebe que, dessa forma, não consegue carregar. Não pode saltar do trem, mesmo que ele esteja parado. Você é uma farsa e o que é pior: tenta enganar a si mesmo.
_ É engano seu… pensar que eu seja assim.
_ Engano é acordar todos os dias às 7 horas da manhã e só voltar pra casa às 8 horas da noite. Beijar, sem vontade, sua mulher, assistir à novela, às vezes ao futebol, e ir dormir pra amanhã começar tudo de novo. Engano, é você.

Goiânia, 24 de setembro de 2003

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Balanço dos 40 anos. Ou: Eu poderia ser Paul Kemp


“No momento estou sentada sozinha num típico café parisiense, num lugar qualquer do mapa. Não sei onde, pois saio simplesmente vagando. Seria legal se você estivesse aqui. Viveríamos muito!” (Paris, 2 de dezembro de 2002)

Não sei se por coincidência, pela embriaguês, pela profissão ou por me conhecer muito bem. Mas minha amiga Cássia Fernandes (para mim, ainda Lucivânia Fernandes) acertou no alvo com o presente. Rum: Diário de um Jornalista Bêbado (de Hunter Thompson) é daqueles livros que eu gostaria de ter escrito. Ou que poderia ter sido escrito para mim. Eu poderia ser Paul Kemp, jornalista norte-americano na San Juan, Porto Rico, nos anos 1950.

Não literalmente, mas literariamente. Mais uma vez, não sei se por coincidência ou por nossas longas conversas em que a literatura se misturava com nossas próprias histórias, Cássia apresentou-me um personagem que me remete a meu autor favorito entre todos os demais: Henry Miller. Apesar da estranheza em se comparar personagem, Kemp, com o autor autobiográfico Miller.

Mas não falo de estilos, regras, normas. Falo de um peculiar estranhamento diante da vida e de um tipo de nostalgia de coisas que nunca aconteceram. Miller nos anos 1930/1940, Kemp na década seguinte e eu na passagem do século XX para o XXI somos igualmente desajustados.

Não, não chego aos extremos de Miller nem aos delitos morais de Kemp. Mas carrego meus próprios conflitos, combato – ou finjo combater – meus desvios de conduta e explicito minha inadequação no mundo da mesma maneira.

Não encontro meu lugar, apesar da mulher que amo e da cidade que adoro. Não me interesso mais pela minha profissão. Não planejo, não dou continuidade. Não paro, não estabilizo, não sigo o fluxograma – e não cito nada disso como qualidades como talvez já tenha pensado um dia. Nem como defeito, simplesmente é assim.

Não escrevo mais – e isso me tortura, mas falta inspiração, motivo. Não sonho mais, apesar dos pesadelos na madrugada. Perdi a capacidade de, a partir de um melancólico e colorido final de tarde, naquele torpor tão bem descrito por Kemp, traçar um futuro grandioso, mesmo sabendo ser a maior parte fantasia. Perdi a capacidade de reflexão sobre o mundo, meu próprio mundo.

Lembro-me da noite de 6 de janeiro de 2004, de como nos divertimos com o que escrevi em meu balanço dos 30 anos. Goiânia, um bar na Praça do Avião, ao deixar o trabalho pouco depois da meia-noite (dia 7, portanto). Lá estavam Cássia e Normand. E chegamos à conclusão de que ainda havia alguns anos antes de transformar as amenidades do dia a dia em único motivo da existência. Aos 40 anos, pergunto-me se esse tempo não chegou.

domingo, 2 de junho de 2013

Minicontos do Galvez

- Nada cai do céu.
- Hoje uma pomba cagou na minha cabeça.
- Mas aí dizem que é sinal de dinheiro!
- No meu caso, foi merda mesmo.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Nem tão diferente assim

Quando Severino acordou do susto que tinha passado foi logo querendo furar a fila. Não sabia onde estava e nem onde ela o levaria, mas não iria ficar esperando. Na verdade, Severino não estava entendendo nadica de nada. A corrida de jegue, a torcida gritando, o jumento em disparada... Severino acordou pela segunda vez – agora, de seu devaneio - quando um sujeito alto, calvo, de óculos quadrados sem aro, com cara de turco barrou sua passagem. “Pra passar na frente, só molhando a minha mão”.

Entendendo cada vez menos, de volta ao final da fila, Severino começou a observar o lugar. Não parecia com nada que já tivesse visto, mas até que era bonito. “Será que estou sonhando que estou nas Europa?”, duvidou. Um saguão amplo, branquinho, e uma recepção lá no fundo, parecia um hotel. Nas paredes, separadas do piso por vãos de cerca de três metros da largura e que não permitiam ver o fundo, fotografias em molduras douradas de inúmeras pessoas. Algumas Severino até conhecia: “Paul Rabbit... não era aquele moço famoso, que sempre aparecia na televisão, um bruxo, cruz-credo?” Tititica... esse Severino conhecia muito, da televisão mesmo, o cabra até que tinha umas musiquinhas e piadinhas engraçadas, lembrava.

Severino agradeceu quando chegou sua vez de falar com o atendente. “Êpa, mas esse não é aquele amigo do presidente, que todo mundo reclamava que não atendia ninguém?”.

“Seu nome, senhor?”, quis saber o recepcionista, com um carregado sotaque caipira. “Severino da Silva”. “Caso ainda não tenha percebido, o senhor está no inferno. É pra cá que vêm os corruptos, os mentirosos, os corintianos, os vascaínos, os flamenguistas, os pagodeiros, os deputados da igreja Universional... ah, esses eu já falei no início, e um tanto de gente mais”.

Severino, que até agora achara que estava sonhando, pirou de vez. “Inferno? Mas pra estar aqui não tem que estar morto?” “Ahan”. “Mas eu não estou sonhando não?” “Não, o senhor morreu de acidente de jegue. Não lembra não? O bicho disparou depois que alguém ligou o som do carro numa música daqueles meninos lá, os dois filhos do Chico. Você caiu, bateu a cabeça, foi socorrido a tempo, mas, sabe como é, SUS...”.

Severino era meio lento, mas nem tanto: a ficha caiu. Só não entendia por que estava no inferno e não no céu. Sempre fizera tudo o que o saudoso pastor Vicente ensinara, desde menino. Não passava um domingo sequer sem visitar pelo menos vinte casas em busca de novos fiéis. Está certo que, quando era mal recebido – e isso nem era tão raro, especialmente no início da manhã – ficava com uma raivinha nada cristã, mas... Pelo menos, nunca tinha permitido uma transfusão ou mesmo doação de sangue. Era rígido com as regras. Caminhando pelo corredor, avistou alguém conhecido. “Pastor Vicente? É o senhor?” Mas o pastor, ocupado em mostrar a nova casa a outro grupo de moradores, nem respondeu.


PS: Publicado originalmente no Mimeographo, em 25/9/2005

sábado, 3 de fevereiro de 2007

Modernidade

Catálogo de Erros

(Imagem: pikisuperstar/Freepik)
Cansaço. Um imenso cansaço. É esse sentimento, menos físico do que possa parecer, que me persegue ultimamente. Agitação. Tem dias, que a agitação não me permite fazer nada. Apatia em criança, hiperatividade doentia em adulto. Mas só nesses dias assim.

Não acredito mais no que dizem por aí. Porque diziam que, quando tivéssemos máquinas inteligentes, que fizessem parte ou todo nosso trabalho, máquinas mais eficientes que metade das gentes por aí, nosso tempo seria outro.

Nós estaríamos, se acreditássemos no que nos contaram, gastando o tempo em pescarias e divertidos encontros com amigos. Porque as máquinas estariam pagando nossas contas, pesquisando nossos trabalhos escolares, guardando nossos arquivos em um disco rígido invisível a nossos olhos, limpando toda a sujeira com um simples toque no botão.

Está tudo por aí e, dizem, algumas máquinas já começam mesmo a pensar – e, creio, muitas delas pensam mais do que um número considerável de pessoas. Mas o nosso tempo, aquele tempo livre, esse, não. Esse desapareceu.

Olho um tempo pra tela, outro tanto pela janela. Carros, seguranças, buzinas, pessoas apressadas, às vezes uma enxurradazinha sobre o canteiro central da avenida pra alterar um pouco a rotina. Sim, claro, das seis da manhã às oito horas da noite. Afinal temos que ser eficientes.

Na parte do tempo que olho pela janela, vejo o motorista de ônibus em atos tão autômatos quanto enfiar a mão na embalagem e levar um amendoim à boca. E ele faz isso todos os dias, no sol ou na chuva. Um desfile interminável de ônibus, carros, motos, caminhões. Não se pode parar. A perua do Sedex seguindo apressada - as pessoas têm pressa não da carta amiga, mas da encomenda valiosa.

O sol ainda alto por causa desse maldito horário de verão, felizmente escondido atrás de densas nuvens. Quem me dera o cinza permanente. Um pouco de umidade no ar pra combater a sequidão do espírito.

Acho que o Mundo deve toda sua gratidão a Freud, Jung e Anna O. Sem eles, ninguém jamais sobreviveria nos tempos de hoje. Recortar fragmentos de sonhos-pesadelos e transformar tudo em solução pra angústia desse século XXI. Esqueçam o inventor da lâmpada, do transplante, do avião, da morfina. Rendam todas as glórias à pequena pílula da felicidade.

Muitos estranharam quando a diretora do presídio deu um tiro no próprio ouvido. Eu, não.